quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Que sejas o meu Tempo


Olhava em desespero para o pulso, enquanto sorvia compulsivamente o leite e quase se engasgava. Saia sempre àquela hora de casa. Todas as manhãs arriscava estatelar-se escadas abaixo, mas insistia em saltar de uma só vez o maior número de lanços possível. Uma hora de autocarro e 12 longas horas de trabalho solitário, cáustico, maquinado e desumano era para o que ela corria. Todos os dias.
A noite acompanhava-a de retorno a casa, derrotada. Olhava sempre para o relógio a fim de aferir o tempo que tinha para ela própria. Dava de comer ao gato e fazia-lhe um par de festas fugidias antes de correr para o banho e vestir o pijama. Accionava o despertador para a manhã seguinte e via, amorfa e desligada, minutos de novela antes de adormecer.
Tinha uma vida insípida e sem valor, mas nunca havia parado para pensar nisso. Não tinha tempo. Os seu olhos eram serviçais daquele seu relógio de pulso, tão gasto e exaurido quanto ela. Nada mais a movia, a não ser aquela ideia louca de desdobrar o tempo em mais tempo.
Certo dia, a rigidez com que ela planeava tudo estalou que nem vidro. Ao fim de tantos anos, o cansaço fê-la esquecer de substituir as pilhas do seu despertador e placidamente dormiu pela manhã fora, até os raios de sol romperem pelo seu quarto adentro.
Antevia-se um grito estridente e mãos levadas à cabeça quando ela acordasse, mas aconteceu o oposto.
Olhou para o relógio e sorriu ainda meia ébria do longo sono de que acordara. Caiu em si. Concebeu logo ali a sólida crença de que o tempo era afinal seu, enquanto roía as unhas em alvoroço e soltava risinhos nervosos. O coração saltava do peito e o ar que respirava quase não lhe cabia nos pulmões. Afinal, havia perdido tanto tempo a tentar multiplicar o seu tempo, quando apenas o devia ter usado para si.
Sentiu que mundo lá fora gritava por notoriedade, e desta vez ela não o ia desapontar. Porque nunca tinha parado para ver a areia escorrer por entre os seus dedos; porque nunca tinha sentido o afagar do sorriso de alguém desconhecido, apressou-se a vestir-se. Deu de comer ao gato, e saiu.
O relógio ficou para trás.